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Geni – Não Recomendada, da Cia. Os Vers'artes. Foto: Washington da Anunciação |
Geni – Não Recomendada pode ser descrito como um trabalho em
constante transformação. O espetáculo performático da Cia. Os Vers'artes, que
será exibido durante o 5º Festival de Artes Cênicas de Alagoas – Festal, no dia
19 de outubro, surgiu da vontade de David André e Saulo Porfírio em criar cenas
inspiradas nas canções Geni e o Zepelim, de Chico Buarque, e Não Recomendado,
de Caio Prado. No curto espaço de tempo entre a primeira apresentação, durante
a calourada do curso de Licenciatura em Teatro em 2018, ao “grande nascimento”
do espetáculo, em agosto de 2019, muita coisa mudou em Geni, exceto a voz em
forma de grito que dá às minorias, desconstruindo, no caminho, temas
considerados tabus pela sociedade.
Em um bate papo com o autor e diretor David André sobre Geni,
vieram à tona lembranças de uma arte ainda embrionária, mas desde sempre
engajada, que foi ganhando novas camadas, colheu elogios, enfrentou dúvidas e
críticas, colocou a nudez em cena como um grande ato libertador e que, em 2019,
chega ao público como persistência e resistência em forma de arte. Acompanhe
conosco essa trajetória!
CORPO CÊNICO
David André e Saulo Porfírio faziam parte de um projeto de
extensão da Universidade Federal de Alagoas, chamado Corpo Cênico. Foi nesse
contexto que uma ideia comum entre os dois, porém com bases distintas, deu
início ao que viria a se tornar Geni – Não Recomendada. Para David, a inspiração
vinha de Geni e o Zepelim, de Chico Buarque; para Saulo, de Não Recomendado, de
Caio Prado. “Por que não? Vamos juntar essas duas e ver o que sai”, relembra David.
“Eu acho que essas duas músicas são muito semelhantes, têm
um cunho político muito forte, então a gente montou cinco cenas para apresentar
na Calourada 2018.1 do curso de Teatro – Licenciatura, da Ufal. Essa primeira
apresentação traz apenas dois atores, um representa o físico e o outro
representa o interior, e a gente trata sobre a questão do nascimento até a fase
adulta. Esse personagem, ainda sem nome, luta contra a sua própria sexualidade.
No meio de toda essa confusão, desse caos e resistência contra ele mesmo, ele
acaba se tornando agressivo, machista, preconceituoso”.
CHOQUE DE REALIDADE
A repercussão do público a essa primeira versão foi bastante
positiva, mas a realidade fora dos palcos acabou por colocar toda a euforia do
momento em perspectiva. Na mesma tarde em que David e Saulo davam vida ao
espetáculo, um jovem de apenas 19 anos perdia a sua. David cita o episódio como
um momento de hesitação, mas que ao mesmo tempo gerou um impulso maior para
tudo aquilo que Geni – Não Recomendada representava.
“À noite recebemos uma notícia triste de um rapaz chamado
David, de 19 anos. Naquela mesma tarde, enquanto, em cena, eu gritava “joga
pedra na Geni” e o Saulo gritava “não joga pedra na Geni”, esse menino era
morto a pedradas, no Salvador Lyra, por ser homossexual. Isso me deu um medo
muito grande de continuar com o espetáculo, nos palcos, nas ruas, em qualquer
lugar, correndo o risco de que aconteça o mesmo com a gente. Então o Saulo
falou ‘eu creio que nós temos que continuar, essa é nossa arma, para falar para
quem tiver por perto sobre essas questões sociais mal resolvidas’”.
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Apresentação de Geni durante o 4º Festal, em 2018. Foto: Jany Santos |
EXPERIÊNCIAS INDIVIDUAIS
Após a apresentação na calourada, Geni – Não Recomendada foi
convidada a participar como ação voluntária no 4º Festal, também em 2018. Mas,
antes disso, já estava em discussão a ideia de expandir o espetáculo. Para
isso, mais atores e atrizes entraram em cena, e o texto já não tratava apenas
da homossexualidade, mas também discutia temas como a violência contra a mulher,
a não-aceitação do corpo, a intolerância religiosa e o racismo.
“O texto partiu das experiências dentro do elenco.
Compartilhávamos o cotidiano de cada um e começamos a fazer sketches para
desenvolver as cenas. Às vezes era difícil terminar os sketches, pois
entrávamos num estágio de choro, de se perguntar ‘que absurdo vivenciar isso.
Tão perto e a gente, muitas vezes, não saber o que fazer’. O texto é meu, mas a
adaptação é coletiva. A direção também foi minha, e o Saulo ajudou na direção
de elenco”.
A apresentação a céu aberto, na Praça Sinimbu, teve, novamente,
boa repercussão, mas também gerou as primeiras críticas. “Na época nós usávamos músicas de artistas famosos, como Johnny
Hooker (Flutua), A Banda Mais Bonita da Cidade (Uma Atriz), além de Geni e Não
Recomendado. A crítica apontou que o espetáculo ficava muito redundante, a
gente fazia e as músicas diziam o que estávamos fazendo. Ou a música começava e
a gente fazia o que a música estava dizendo. Então tratamos de deixar o
espetáculo mais original. Tiramos as músicas, fizemos músicas autorais”, explica David.
GENIS ATUAIS
A questão envolvendo as músicas não autorais acompanhou o
sentimento de David de que a obra precisava ser mais lapidada. Após o 4º
Festal, Geni entrou num hiato, ao mesmo tempo em que Saulo Porfírio precisou de
afastar para cuidar do próprio TCC.
“Eu comecei a fazer mais pesquisas: quem era Geni? Quem é
Geni hoje na sociedade? Na música do Chico, ela é uma travesti que é malvista,
julgada e apedrejada pela sociedade, e ela só passa a ser bem vista a partir do
momento em que a sociedade precisa dela. Então comecei a pensar: quem são as
Genis de hoje? E percebi que ela é não apenas a travesti, mas também a mulher,
o negro, a negra, a pessoa que não é padrão, o pobre. Geni, em geral, são as
minorias. Fiquei com essa inquietação: então preciso falar de mais coisas,
preciso lapidar mais o espetáculo, preciso falar sobre as minorias e também
sobre a diversidade”.
Após o período de pausa, Geni – Não Recomendada estreou, em
30 de agosto de 2019, no Arte Pajuçara, contemplada pelo edital Pauta Aberta da
Prefeitura de Maceió. Para David, a data marca o “grande nascimento” do
espetáculo. O que, inicialmente, eram cinco cenas, agora já somavam oito.
Elementos foram acrescentados, outros eliminados. A obra ficou mais densa e
chegava com uma classificação indicativa de 18 anos.
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O "batismo" em cena. Foto: Washington da Anunciação |
BICHO DE SETE CABEÇAS
A classificação 18+ refletia o impacto provocado por Geni –
Não Recomendada. Não apenas pela força de seu conteúdo, mas também por incluir
a nudez em cena. Sobre esse aspecto, David revela a preocupação em não permitir
que o interesse do público ficasse restrito apenas ao corpo nu, quando este
deveria ser tratado com mais naturalidade.
“Na segunda cena do espetáculo, uma das atrizes tira toda a
roupa. É a cena do batismo, ela tira essa roupa como quem tira um fardo, um
peso. É uma cena um pouco macabra, mas a gente quis colocar o nu para gerar
esse incômodo e para dizer que o corpo é apenas um corpo, que não há nada
demais ali, que não é um bicho de sete cabeças. Uma vez ouvi alguém dizer ‘ah,
mas você precisa ter um propósito para usar o nu em cena’. Mas qual propósito
seria esse? Do tipo, se eu precisar trocar de roupa em cena, eu posso ficar nu?
Se precisar tomar um banho em cena, eu posso ficar nu? Esse tipo de pergunta
surge porque o nu ainda é um tabu. E o nu é uma coisa muito natural”.
Com o tema em debate durante reuniões de elenco, o grupo
acabou optando por divulgar o espetáculo sem “revelar o nu”. Questionamentos
acerca da classificação indicativa eram direcionados apenas às questões de
violência presentes na peça. No final das contas, a estratégia acabou surtindo efeito,
como conta David: “O nu acabou sendo uma surpresa. Recebi um feedback muito
positivo. ‘Ah, eu tenho problemas com o nu, em cena ou em qualquer lugar, e
desta vez foi tão sutil, tão suave que não me incomodou ver uma pessoa nua no
palco’. Era exatamente isso: mostrar ao público ou a qualquer outra pessoa que
não há problema no corpo do outro. O nu ainda inda é muito erotizado. E não
precisa ser sempre assim”.
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David André durante a apresentação no Arte Pajuçara. Foto: Washington da Anunciação |
EXPECTATIVAS PARA O 5º FESTAL
Um grande ciclo está prestes a se completar para Os
Vers'artes e para Geni – Não Recomendada. No dia 19 de outubro, o espetáculo, que
começou com apenas dois atores numa calourada, retorna à Praça Sinimbu como
parte da programação oficial do 5º Festal no Centro de Maceió. A apresentação
acontecerá às 17h, na Sala 11 – Camerata, no mesmo Espaço Cultural que também
receberá trabalhos de estudantes de Artes (Licenciatura e Escola Técnica) da
Ufal. Para David, o estado de espírito não poderia ser outro que
não o de alegria, mas sem nunca esquecer da responsabilidade.
“Voltamos ao Festal,
bastante felizes por tudo isso! Falamos sobre diversidade, sobre minorias, e
pedimos respeito! Tratamos dessas questões mal resolvidas como única voz que
temos para gritar ‘Não joga pedra na Geni’. Nossa voz é a arte, temos essa arma
e estamos usando para poder falar, gritar, resistir e lutar”.