Ano passado o Coletivo Volante de Teatro se apresentou no Festal, em outubro, com o seu espetáculo Incelença. Fomos atrás do grupo para saber mais a respeito de seus processos:
FESTAL: Quais as principais motivações e situações que permeiam a
gênese da criação do espetáculo que seu grupo apresentou no
Festal?
Volante: No final do Festal 2016, estávamos juntos e durante o Sarau de
finalização Magnum Francisco falava da morte da última testemunha
do desaparecimento de seu primo Davi da Silva após uma abordagem
policial aqui em Maceió, em seguida Rogério Dyas assumiu o
microfone e recitou um cordel chamado “Mercado da Morte”. Aquele
instante foi bastante impactante para nosso encontro. Nos dias
seguintes os jornais anunciavam os dados do Mapa da Violência no
Brasil e Alagoas aparecia mais uma vez entre os estados mais
violentos, principalmente para jovens negros e periféricos. Naquele
ano a cada 13 pessoas assassinadas, 12 eram negras e periféricas. O
impacto dessa informação impulsionou que nos juntássemos.
Um
mês depois do encerramento do Festal, estávamos juntos em sala de
ensaio, trazendo informações que nos afetavam, experiências
pessoais, familiares ou de desconhecidos. Os
dados do Mapa da Violência, as crescentes comprovações no nosso
dia a dia desse genocídio da juventude negra e periférica nos fez
trazer esse tema à tona na nossa encenação.
A
força de dona Maria José, mãe de Davi da Silva, em enfrentar e ir
a imprensa e a justiça cobrar esclarecimentos pelo desaparecimento
de seu filho fez com que voltássemos o nosso olhar ao longo do
processo para as mães, as mães que lutam, que sofrem e que guardam
firmes a memória de seus filhos.
Atravessados
por esses dados, sua contínua crescente e repetição, posicionando
o estado entre os primeiros no Mapa da Violência, mergulhamos nesse
contexto para dar voz às histórias de mães que perderam os seus
filhos e filhas. Nossos corpos são instrumentos de propagação
dessas histórias que percorrem espaços de abandono e esquecimento.
O
canto das Incelenças, tradição nordestina de cantos fúnebres,
conduz uma jornada em busca pela memória de vidas negras que são
cotidianamente silenciadas.
Festal: No que se refere à relação direção x elenco, como vocês costumam caracterizar o processo criativo desse espetáculo? Como essas funções foram compreendidas e exercidas durante esse processo?
Volante: Nosso
processo é colaborativo.
Fomos
encontrando a nossa forma colaborativa de trabalhar, visto que cada
grupo vai entendendo como essa forma de trabalhar se adequa a sua
construção.
Quando
decidimos por construir “Incelença” fomos convidando pessoas que
gostaríamos de trabalhar e que já nos aproximávamos de alguma
forma de suas construções. Foi aí que entrou para colaborar no
coletivo Nathaly Pereira e Wanderlândia Melo (Clowns de Quinta),
Gessyca Geyza (Coletivo Hetéaçã), Jonathan e Jefferson (do coco de
roda) e Thiago Amorim (estudante de Ciências Sociais).
A
proposta inicial era que cada pessoa que ali estava trouxesse a sua
experiência para dentro da construção, então, em uma semana nós
trabalhávamos uma técnica de Bufão vindo de atrizes/palhaças
(Nathaly e Wanderlândia), na outra a técnica da mimese corpórea
por Gessyca Geyza, o coco de roda vindo da experiência de Jonathan e
Jeferson, estudos sobre a violência em Alagoas com o Thiago, por
exemplo. Essas experiências se misturavam, não sabíamos aonde isso
nos levaria. Sabíamos que queríamos falar sobre violência. Isso
nos ligava naquele instante. Inicialmente tínhamos um texto, mas ao
nos encontrarmos ele foi sendo abandonado e transformado em uma
experiência nova.
Em
um determinado momento do processo percebemos que não chegaríamos
naquele texto de dezembro de 2016 e que precisaríamos de uma
direção.
É
aí que o coletivo decide pela direção de Gessyca Geyza e ela
assume a tarefa de orquestrar todas essas informações que trazíamos
toda semana. Gessyca
vai provocando, encontrando caminhos, organizando toda aquela
informação para chegar no lugar que chegamos na estreia. Em
paralelo um novo texto é construído através da experiência de
cada ator e atriz. Bruno Alves assume a função de tecer esse texto
que surgia dentro da sala de ensaio e que era moldado a partir da
atuação e da direção de Gessyca Geyza.
A
descoberta do espaço foi de fundamental importância. Em dezembro de
2016 achávamos que seria um espetáculo com estética de rua, mas o
processo nos fez perceber que a nossa história pedia um outro
espaço. Quando entendemos que o Porão do Teatro Deodoro era o nosso
lugar de encenação muita coisa foi se encontrando e se
fortalecendo. Muitas cenas surgiram dentro desse espaço. Ele foi de
fundamental de importância e um impulsionador para que pudéssemos
estrear.
Outras
dramaturgias como a de luz e de figurino foram sendo incorporadas de
uma forma bastante coletiva e desde a concepção e confecção as
atrizes e os atores estavam envolvidos. As
funções foram se mostrando ao longo do caminho, inclusive texto,
espaço e sonorização.
Esse
processo de direção de Gessyca é um processo continuo, pois a cada
espaço que vamos precisamos entender como se comunicar com esse
espaço. Muitas cenas que temos hoje, quase um ano depois, tem
surgido nos espaços em que vamos apresentando.
O
olhar do público tem sido de grande importância. Muitas cenas vão
sendo afetadas pelas respostas do público e vamos sendo alimentados
por esses encontros.
Festal: Todo processo criativo é também um processo seletivo de ideias,
materiais, escolhas. No caso desse espetáculo, como se deu, ou tem
se dado, esse processo de “edição”? Se possível, cite exemplos
específicos.
Volante: Nós
tínhamos os dados do Mapa da Violência. Tínhamos uma referência
regional como o canto das incelenças, tão comum no nosso imaginário
ou mesmo em alguns de nós vindos do interior que costumávamos a
acompanhar esses cantos nos velórios. Tínhamos histórias como as
de dona Maria José, mãe de Davi da Silva. Tínhamos experiências
particulares de percas e experiências estéticas diversas que iam do
coco de roda, cinema, mimese a palhaçaria. Não queríamos deixar
nada de fora. Queríamos que cada atriz e ator soubesse de sua
importância para essa construção.
O
primeiro entendimento se deu quando entendemos já depois de alguns
meses que não iriamos chegar ao texto proposto inicialmente em
dezembro de 2016. A partir daquele dia “zeramos o jogo” na busca
desse texto que queria ser dito por todes.
Decidir
pela direção de Gessyca Geyza foi um momento muito importante.
Gessyca com seu olhar e sensibilidade conseguia tecer uma encenação
que ia criando essas edições e fortalecendo a dramaturgia. O olhar
de Gessyca ao assistir aquilo que se construía foi capaz de
organizar esse mundo de informações que trazíamos.
Entendemos
que não queríamos ir para a rua. Que a história que nascia pedia
para ser feita em lugares abandonados ou com uma estrutura precária.
O espaço foi um divisor de águas. Entrar no Porão nos fez
construir as cenas que a peça pedia. Gessyca Geyza propunha jogos,
imagens e ações que nos faziam descobrir naquele espaço a nossa
dramaturgia.
Outro
momento de entendimento foi quanto a dramaturgia da luz, do som e do
figurino. Pensamos muitas vezes em convidar pessoas que pudessem nos
ajudar, não que isso não seja importante, mas no decorrer do
processo entendemos que tudo isso deveria também vir de cada pessoa
que ali estava.
Festal: O grupo reconhece algum sentido de continuidade e conexão entre
esse processo criativo e os anteriores ou nesse caso específico se
trata de uma tentativa de se desviar da maneira como o grupo tem
criado? Que aspectos se apresentam como novidade no processo criativo
desse espetáculo em relação aos que o antecederam.
Volante: Acreditamos
que no fim das contas tudo é uma continuidade, um aperfeiçoamento e
que cada novo passo dado só é possível por sementes que foram
plantadas lá atrás.
Nesse
nosso segundo espetáculo existem rompimentos, mas também existem
coisas que vão se continuando.
No
primeiro espetáculo, “Volante”, partimos para uma estética
armorial ou barroca, é uma tentativa de diálogo que percorre um
universo lúdico, construído através de memórias e experiências
estéticas trazidas ao longo da vida. “Volante” surge pela
necessidade de contar, de encontrar pessoas e de circular por
diversos espaços. Diferente de “Incelença” usa de símbolos e
metáforas para sublinhar momentos da vida do ator/dramaturgo. Faz
uso de maquiagem, por exemplo, coisa que em “Incelença”
entendemos que não caberia.
Em
“Incelença” a experiência de construção coletiva rompe muito
desses lugares. Agora tudo é dito de forma direta, os símbolos são
fundidos pela própria ação. Experiências estéticas diversas se
encontram. É impossível sair do mesmo jeito quando o encontro
acontece. Deixamo-nos afetar pelo que o outro tem a dizer e a
mostrar. Ouvimos. Propomos. Trocamos.
Das
duas experiências podemos dizer que permanecem a busca por espaços
alternativos, a busca por conceber e confeccionar dramaturgias, o
retorno a memória como lugar de criação e fortalecimento do
presente, o processo colaborativo, a necessidade da atriz e do ator
colaborador/construtor e um teatro popular.
Festal: E para encerrar, uma pergunta sobre o Festal. Como você ou seu
grupo percebe(m) o papel de movimento das artes cênicas para o
cenário da produção cultural local?
Volante: As
Artes Cênicas, a arte no geral, está para fortalecer a nossa
existência no espaço em que vivemos. Vivemos em uma cidade que nos
afeta diariamente, seja da maneira positiva ou negativa. Responder a
cidade, pertencer a ela e questioná-la é um dos papeis da arte,
principalmente em tempos de precarização da arte, da falta de
políticas públicas eficazes e continuas, da falta de espaço (ou
melhor, do não uso de muitos espaços que vivem fechados na cidade).
As
Artes Cênicas colaboram com a nossa vida nesse lugar. Nos faz pensar
quem somos dentro dele e o que podemos fazer para torna-lo melhor.
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