quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Entrevista: Coletivo Volante de Teatro



Ano passado o Coletivo Volante de Teatro se apresentou no Festal, em outubro, com o seu espetáculo Incelença. Fomos atrás do grupo para saber mais a respeito de seus processos:


FESTAL: Quais as principais motivações e situações que permeiam a gênese da criação do espetáculo que seu grupo apresentou no Festal?

Volante: No final do Festal 2016, estávamos juntos e durante o Sarau de finalização Magnum Francisco falava da morte da última testemunha do desaparecimento de seu primo Davi da Silva após uma abordagem policial aqui em Maceió, em seguida Rogério Dyas assumiu o microfone e recitou um cordel chamado “Mercado da Morte”. Aquele instante foi bastante impactante para nosso encontro. Nos dias seguintes os jornais anunciavam os dados do Mapa da Violência no Brasil e Alagoas aparecia mais uma vez entre os estados mais violentos, principalmente para jovens negros e periféricos. Naquele ano a cada 13 pessoas assassinadas, 12 eram negras e periféricas. O impacto dessa informação impulsionou que nos juntássemos.

Um mês depois do encerramento do Festal, estávamos juntos em sala de ensaio, trazendo informações que nos afetavam, experiências pessoais, familiares ou de desconhecidos. Os dados do Mapa da Violência, as crescentes comprovações no nosso dia a dia desse genocídio da juventude negra e periférica nos fez trazer esse tema à tona na nossa encenação.

A força de dona Maria José, mãe de Davi da Silva, em enfrentar e ir a imprensa e a justiça cobrar esclarecimentos pelo desaparecimento de seu filho fez com que voltássemos o nosso olhar ao longo do processo para as mães, as mães que lutam, que sofrem e que guardam firmes a memória de seus filhos.

Atravessados por esses dados, sua contínua crescente e repetição, posicionando o estado entre os primeiros no Mapa da Violência, mergulhamos nesse contexto para dar voz às histórias de mães que perderam os seus filhos e filhas. Nossos corpos são instrumentos de propagação dessas histórias que percorrem espaços de abandono e esquecimento.

O canto das Incelenças, tradição nordestina de cantos fúnebres, conduz uma jornada em busca pela memória de vidas negras que são cotidianamente silenciadas.





Festal: No que se refere à relação direção x elenco, como vocês costumam caracterizar o processo criativo desse espetáculo? Como essas funções foram compreendidas e exercidas durante esse processo?


Volante: Nosso processo é colaborativo.


Fomos encontrando a nossa forma colaborativa de trabalhar, visto que cada grupo vai entendendo como essa forma de trabalhar se adequa a sua construção.

Quando decidimos por construir “Incelença” fomos convidando pessoas que gostaríamos de trabalhar e que já nos aproximávamos de alguma forma de suas construções. Foi aí que entrou para colaborar no coletivo Nathaly Pereira e Wanderlândia Melo (Clowns de Quinta), Gessyca Geyza (Coletivo Hetéaçã), Jonathan e Jefferson (do coco de roda) e Thiago Amorim (estudante de Ciências Sociais).

A proposta inicial era que cada pessoa que ali estava trouxesse a sua experiência para dentro da construção, então, em uma semana nós trabalhávamos uma técnica de Bufão vindo de atrizes/palhaças (Nathaly e Wanderlândia), na outra a técnica da mimese corpórea por Gessyca Geyza, o coco de roda vindo da experiência de Jonathan e Jeferson, estudos sobre a violência em Alagoas com o Thiago, por exemplo. Essas experiências se misturavam, não sabíamos aonde isso nos levaria. Sabíamos que queríamos falar sobre violência. Isso nos ligava naquele instante. Inicialmente tínhamos um texto, mas ao nos encontrarmos ele foi sendo abandonado e transformado em uma experiência nova.

Em um determinado momento do processo percebemos que não chegaríamos naquele texto de dezembro de 2016 e que precisaríamos de uma direção.

É aí que o coletivo decide pela direção de Gessyca Geyza e ela assume a tarefa de orquestrar todas essas informações que trazíamos toda semana. Gessyca vai provocando, encontrando caminhos, organizando toda aquela informação para chegar no lugar que chegamos na estreia. Em paralelo um novo texto é construído através da experiência de cada ator e atriz. Bruno Alves assume a função de tecer esse texto que surgia dentro da sala de ensaio e que era moldado a partir da atuação e da direção de Gessyca Geyza.

A descoberta do espaço foi de fundamental importância. Em dezembro de 2016 achávamos que seria um espetáculo com estética de rua, mas o processo nos fez perceber que a nossa história pedia um outro espaço. Quando entendemos que o Porão do Teatro Deodoro era o nosso lugar de encenação muita coisa foi se encontrando e se fortalecendo. Muitas cenas surgiram dentro desse espaço. Ele foi de fundamental de importância e um impulsionador para que pudéssemos estrear.

Outras dramaturgias como a de luz e de figurino foram sendo incorporadas de uma forma bastante coletiva e desde a concepção e confecção as atrizes e os atores estavam envolvidos. As funções foram se mostrando ao longo do caminho, inclusive texto, espaço e sonorização.

Esse processo de direção de Gessyca é um processo continuo, pois a cada espaço que vamos precisamos entender como se comunicar com esse espaço. Muitas cenas que temos hoje, quase um ano depois, tem surgido nos espaços em que vamos apresentando.

O olhar do público tem sido de grande importância. Muitas cenas vão sendo afetadas pelas respostas do público e vamos sendo alimentados por esses encontros.


Festal: Todo processo criativo é também um processo seletivo de ideias, materiais, escolhas. No caso desse espetáculo, como se deu, ou tem se dado, esse processo de “edição”? Se possível, cite exemplos específicos.

Volante: Nós tínhamos os dados do Mapa da Violência. Tínhamos uma referência regional como o canto das incelenças, tão comum no nosso imaginário ou mesmo em alguns de nós vindos do interior que costumávamos a acompanhar esses cantos nos velórios. Tínhamos histórias como as de dona Maria José, mãe de Davi da Silva. Tínhamos experiências particulares de percas e experiências estéticas diversas que iam do coco de roda, cinema, mimese a palhaçaria. Não queríamos deixar nada de fora. Queríamos que cada atriz e ator soubesse de sua importância para essa construção.

O primeiro entendimento se deu quando entendemos já depois de alguns meses que não iriamos chegar ao texto proposto inicialmente em dezembro de 2016. A partir daquele dia “zeramos o jogo” na busca desse texto que queria ser dito por todes.

Decidir pela direção de Gessyca Geyza foi um momento muito importante. Gessyca com seu olhar e sensibilidade conseguia tecer uma encenação que ia criando essas edições e fortalecendo a dramaturgia. O olhar de Gessyca ao assistir aquilo que se construía foi capaz de organizar esse mundo de informações que trazíamos.

Entendemos que não queríamos ir para a rua. Que a história que nascia pedia para ser feita em lugares abandonados ou com uma estrutura precária. O espaço foi um divisor de águas. Entrar no Porão nos fez construir as cenas que a peça pedia. Gessyca Geyza propunha jogos, imagens e ações que nos faziam descobrir naquele espaço a nossa dramaturgia.

Outro momento de entendimento foi quanto a dramaturgia da luz, do som e do figurino. Pensamos muitas vezes em convidar pessoas que pudessem nos ajudar, não que isso não seja importante, mas no decorrer do processo entendemos que tudo isso deveria também vir de cada pessoa que ali estava.


Festal: O grupo reconhece algum sentido de continuidade e conexão entre esse processo criativo e os anteriores ou nesse caso específico se trata de uma tentativa de se desviar da maneira como o grupo tem criado? Que aspectos se apresentam como novidade no processo criativo desse espetáculo em relação aos que o antecederam.

Volante: Acreditamos que no fim das contas tudo é uma continuidade, um aperfeiçoamento e que cada novo passo dado só é possível por sementes que foram plantadas lá atrás.

Nesse nosso segundo espetáculo existem rompimentos, mas também existem coisas que vão se continuando.

No primeiro espetáculo, “Volante”, partimos para uma estética armorial ou barroca, é uma tentativa de diálogo que percorre um universo lúdico, construído através de memórias e experiências estéticas trazidas ao longo da vida. “Volante” surge pela necessidade de contar, de encontrar pessoas e de circular por diversos espaços. Diferente de “Incelença” usa de símbolos e metáforas para sublinhar momentos da vida do ator/dramaturgo. Faz uso de maquiagem, por exemplo, coisa que em “Incelença” entendemos que não caberia.

Em “Incelença” a experiência de construção coletiva rompe muito desses lugares. Agora tudo é dito de forma direta, os símbolos são fundidos pela própria ação. Experiências estéticas diversas se encontram. É impossível sair do mesmo jeito quando o encontro acontece. Deixamo-nos afetar pelo que o outro tem a dizer e a mostrar. Ouvimos. Propomos. Trocamos.

Das duas experiências podemos dizer que permanecem a busca por espaços alternativos, a busca por conceber e confeccionar dramaturgias, o retorno a memória como lugar de criação e fortalecimento do presente, o processo colaborativo, a necessidade da atriz e do ator colaborador/construtor e um teatro popular.

Festal: E para encerrar, uma pergunta sobre o Festal. Como você ou seu grupo percebe(m) o papel de movimento das artes cênicas para o cenário da produção cultural local?

Volante: As Artes Cênicas, a arte no geral, está para fortalecer a nossa existência no espaço em que vivemos. Vivemos em uma cidade que nos afeta diariamente, seja da maneira positiva ou negativa. Responder a cidade, pertencer a ela e questioná-la é um dos papeis da arte, principalmente em tempos de precarização da arte, da falta de políticas públicas eficazes e continuas, da falta de espaço (ou melhor, do não uso de muitos espaços que vivem fechados na cidade).

As Artes Cênicas colaboram com a nossa vida nesse lugar. Nos faz pensar quem somos dentro dele e o que podemos fazer para torna-lo melhor.


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